A crise climática e as assimetrias sócio-económicas

2021-03-07 · Francisco Raposo

Existe uma tendência para pensar na crise climática enquanto um problema global. Contudo, os países mais ricos, enquanto responsáveis pela maioria das emissões de CO2, são os que assimetricamente menos sofrem com os desastres naturais resultantes.

Em 1972, efetuou-se, na capital da Suécia, a primeira grande reunião com líderes mundiais para discutir questões ambientais, que resultou na Declaração de Estocolmo. Este documento reconhece a ligação do Homem à natureza, tanto como habitante e como ser capaz de a mudar. Constam nele 26 princípios defendendo a preservação do ambiente e o desenvolvimento sustentável enquanto ponto fulcral na sobrevivência da espécie humana. [1]. Na realidade, apesar de insuficiente, marcou o passo para a entrada das alterações climáticas no espetro político, e enquanto uma preocupação para todos. Ou pelo menos, esperar-se-ia que sim.

Os anos 2015 até 2019 foram os anos mais quentes alguma vez registados, fruto de milhões de toneladas de dióxido de carbono despejados para a atmosfera todos os anos. Aliás, durante os últimos 800 mil anos, a concentração de CO2 na atmosfera nunca ultrapassou os 300 ppm (partes por milhão, ou seja, 300 g de CO2 por cada milhão de gramas de ar atmosférico), tendo sucessivamente passado momentos de mais alta e depois mais baixa concentração, uma tendência conhecida como ciclo de Milankovich. Contudo, desde a Revolução Industrial, tem vindo a aumentar assintoticamente e já ultrapassou aos 400ppm. Mesmo retornando para os valores normais estabilizados, a temperatura continuará lentamente a aumentar nas décadas seguintes [2]. Questiona-se então o porquê de continuarmos a emitir Gases de Efeito de Estufa?

Na realidade, utilizar a primeira pessoa do plural é algo dissimulador. Existe uma tendência para pensar na crise climática enquanto um problema global, em que todos estão no mesmo barco; todavia, tanto em termos de responsabilidade como de consequências mais dramáticas, isto não se denota. Por um lado, são os países mais ricos os responsáveis pela grande parte das emissões de CO2. Por outro, são os países mais pobres os que assimetricamente sofrem em maior parte com os desastres naturais resultantes. Mas não é suficiente ficar por aqui. Esta perspetiva internacional, embora necessária, retira do panorama dois importantes fatores, entre si relacionados: Em primeiro lugar, é útil transferir também a linha de pensamento ao nível das relações intra-nacionais, já que dentro de cada país, há distinções de nível de riqueza entre diferentes setores da população. Em segundo, elimina a responsabilidade pessoal enquanto foco, e isso será importante em breve. É essa a perspetiva seguida por S. Nazrul Islam e John Winkel num estudo publicado no Department of Economic & Social Affairs da ONU [3], que analisa os modos como as populações mais pobres são afetadas desproporcionalmente pela crise ambiental (bem como outros grupos, discriminados de acordo com o género, raça, classe, etc., aos quais o texto aqui redigido não faz o devido jus, por ter outro foco), num contexto intra-nacional.

Os efeitos são sentidos através dos canais da 1. exposição, 2. suscetibilidade e 3. capacidade de lidar com os desastres naturais resultantes da destruição ambiental. A título exemplificativo, as populações mais pobres costumam viver em zonas onde cheias são mais comuns, expondo-as a maiores riscos. Daí resulta que são também elas as mais suscetíveis a danos materiais e humanos; por fim, a sua falta de meios financeiros e privados inabilita-as de recuperar dos danos causados (não têm dinheiro para adquirir um seguro, por exemplo). Assim, a combinação dos três cria um ciclo vicioso em que a assimetria de riqueza cria as condições em que as populações mais pobres são mais afetadas pelos desastres naturais, o que, em seu lugar, origina mais assimetria. Em suma, na base de que existem pessoas com rendimentos muito mais baixos que outras, são elas as mais gravemente abaladas por eventuais catástrofes ambientais. Não haverá dúvida, então, que milhões de pessoas ficarão seriamente debilitadas com os fenómenos consequentes das alterações climáticas. Em novembro de 2020, a América Central foi atingida por dois furacões consecutivos, o Eta e o Iota, que afetaram pelo menos 6 milhões de pessoas, o que já incentivou já quase dez mil a fugir das zonas afetadas à procura de nova habitação [4]. Este tipo de êxodo, provocado por catástrofes ambientais, tem o nome de migração climática, e tem-se tornado cada vez mais comum em partes muito pobres do planeta. Embora acontecimentos desse calibre não sejam habituais em território português, nem instiguem esse tipo de movimentação populacional, é inegável a vulnerabilidade de Portugal a incêndios e secas extremas, derivado das altas temperaturas atingidas durante o Verão.

Retornando, então, à questão de porque não se atingiu ainda a neutralidade carbónica apesar dos avisos de catástrofe ambiente, e porque é que as metas apontam apenas para 2050 em Portugal. Por um lado, a resposta parece estar relacionada com a presença constante de produtos poluentes no dia-a-dia, como plástico e combustíveis fósseis. Por outro, os lucros provenientes desses produtos são um bem precioso para muitas das pessoas que ficaram ricas produzindo-os em primeiro lugar. E esse fator é algo importante, no contexto deste texto.

Efetivamente, há algo a ter em atenção: da perspetiva de que a responsabilidade por grande parte da emissão de GEE cai em indústrias como da energia, dos transportes e da produção massiva de alimentos, e de que os lucros de cada uma cai no colo de uma porção minúscula da população, é essa secção ao mesmo tempo a maior causadora de dano e a menos propícia a senti-lo. Aliás, na tentativa de maximizar os lucros e ultrapassar a competição, há um incentivo para os (grandes) produtores de cortar os custos ao máximo, e isso inclui diminuir salários e condições de trabalho, procurar os sítios onde produzir com menores despesas sem compensações para as populações locais, manter animais em condições horrendas (no caso da indústria alimentar), lobbying, de modo a obter benefícios fiscais, e, para todos os efeitos, cometer crimes ambientais de diverso tipo, como desflorestar e explorar os recursos terrestres inconscientemente, entre outros (negacionismo climático tornou-se um recorrente clássico).

Neste ponto, até indústrias de produtos aparentemente sustentáveis conseguem cair na mesma categoria (o chamado Greenwashing [5]). Mais perto de casa, o fecho da central termoelétrica de Sines (EDP) já se concretizou e o da refinaria de Matosinhos (Galp) já foi anunciado [6, 7], deixando em causa o emprego de centenas de trabalhadores. É indubitável que é necessário fechar os grandes produtores de GEE; no entanto, é ainda mais criticável não ter havido um plano prévio de realocação dos trabalhadores, que respeitasse os princípios de uma transição justa, tendo as empresas em vez disso optado por entregar-lhes a carta de saída e um convite para o centro de emprego. Ainda mais, pouco foi feito pelo governo para evitar o modo como isso se desenrolou. Assim, não resta muita dúvida de que, por vezes, o que vem em primeiro lugar é o lucro e a ótica, e não o bem-estar dos trabalhadores, consumidores ou das espécies humana e animais em geral, mesmo que venha com o crédito auto-proclamado de sustentabilidade. No fundo, resulta que qualquer solução para a crise ambiental que não incida também nos problemas estruturais mencionados anteriormente, tanto acerca das assimetrias de riqueza como do modo como bens são produzidos (direitos dos trabalhadores, direitos dos animais, etc.), será insuficiente.

Foi mencionado ainda que parte da razão de não se ter atingido os objetivos necessários para salvar o planeta de um eventual apocalipse deriva de uma dependência que se criou a produtos que são altamente poluentes (factory farming, plástico, combustíveis fósseis, …), principalmente nos países do Norte Global, muitas vezes produzidas longe do local de consumo. Não é controverso referir que os rendimentos de cada pessoa influenciam o modo como consome. Neste sentido, sendo que esse tipo de produto costuma ser muito barato (pelas razões explicadas há dois parágrafos - são baratos de produzir), são os mais acessíveis à maioria (insuficiente será enfatizar que há pessoas em condições de pobreza extrema a quem esses produtos são inacessíveis, especialmente no Sul Global). Por outro lado, está refletida uma cultura consumista que valoriza a compra de produtos enquanto atividade social. Por exemplo, visitas ao centro comercial são frequentemente feitas com amigos ou família, ou seja, num contexto de atividade social. Do mesmo modo, acontecimentos como a Black Friday representam um enorme estímulo ao consumismo, festejado sob a forma de descontos. Desta feita, a consciencialização ambiental é um aspeto fundamental. Além disso, abre-se um espaço para discutir os efeitos que abordar as outras problemáticas sócio-económicas teria na resolução climática. Há com certeza medidas, como um investimento mais profundo em transportes públicos, que serviriam o efeito duplo de prestar um serviço público e o de atrair mais pessoas à sua utilização. Um aumento geral dos rendimentos, aliada a essa consciencialização, poderia incentivar as pessoas a consumir produtos mais locais, ou, pelo menos, mais sustentáveis, que costumam ser mais caros. Não é a solução no seu pleno, no entanto, mostra como há muito que pode ser feito. Concluindo, é muito fácil por vezes observar estas problemáticas enquanto independentes, díspares uma da outra. No entanto, torna-se útil ultrapassar essa perspetiva. Por ser curto, é provável que este texto não cumpra a ambiciosa missão de fazer justiça a cada uma delas, e o leitor é incentivado a investigar mais. A dificuldade de encontrar solução surge em muito do facto de estarem relacionadas dos modos menos subtis. Não existe nenhum elixir mágico que resolva esses problemas com os quais somos confrontados. Todos eles requerem trabalho imenso, e a crise ambiental não presta sequer o prazer de poder gritar um “Bem te avisei” com esgar, quando chegar o tempo de contar as fichas, e tudo colapsar. Ninguém consegue admitir com felicidade a sua própria auto-destruição. Caso nada seja feito, a espécie humana extingue-se, e não há meias-voltas que se dê a essa certeza. Somos então convidados enquanto espécie a determinar um futuro melhor para o planeta, priorizando o bem comum. Mais fundamental ainda é que estas intervenções partam antes do desejo de fazer cumprir a vontade democrática de assegurar o planeta para as gerações futuras e não do desejo de encher os bolsos daqueles que outrora lucravam com a destruição do meio ambiente. O importante é não perder a esperança e lutar.

Referências

[1] Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano – 1972

[2] Our World in Data, CO2 and Greenhouse Gas Emissions

[3] S. Nazrul Islam and John Winkel, Climate Change and Social Inequality

[4] CBS news, “We have to go”: Climate change driving increased migration from Central America

[5] SAPO, Direção-Geral do Consumidor alerta para dezenas de casos de “greenwashing” em sites de ecommerce

[6] TSF, “É a destruição da Petrogal.” Fim da refinação pode levar ao despedimento de 300 pessoas

[7] Diário de Notícias, Central fecha em Sines. “Que garantissem o trabalho, tudo menos o desemprego”}