Obsolescência programada: a falha infalível do consumismo

2022-03-12 · Ana Jorge Caeiro

Gostavas de aprender mais sobre as consequências ambientais, humanitárias e económicas da aplicação deste conceito à escala industrial? Convidamos-te a ler este artigo onde contamos a sua génese, aplicações em diferentes indústrias e impacto no mundo.

Sabias que…

  • De acordo com um relatório das Nações Unidas (NU), e-waste já representa 50 milhões de toneladas métricas produzidas apenas em 2019, das quais menos de 20% foi reciclado;

  • Uma tonelada de lixo eletrónico equivale, em média, a: 37 TVs, 135 computadores, 3333 teclados ou 8,000 telemóveis;

  • 7% do ouro no planeta está em e-waste, 100 vezes mais concentrado do que em minério de ouro;

  • Na América do Norte apenas, 350 milhões de cartuchos de tinteiros, não totalmente vazios, acabam em aterros anualmente.

A crescente procura de certos produtos, nomeadamente carros, artigos de moda e eletrodomésticos, gera não só impactos ambientais na produção mas também uma quantidade de resíduos não recicláveis sem precedentes. Porém, existe um fator que afeta estas consequências, a obsolescência destes objetos, processo através do qual estes deixam de ser funcionais ou desejáveis ao consumidor. De facto, embora todos tenhamos consciência de que é uma condição da qual é difícil escapar, raramente nos lembramos das formas como esta foi incutida na nossa sociedade, algo de que a minha amiga Verónica me lembrou dando assim origem a este artigo. O conceito é aplicado não só de forma planeada, em que de alguma forma o tempo de vida de um produto é reduzido deliberadamente, ou percecionada, ao expor o consumidor a produtos de nova geração cujas qualidades estéticas e não só inviabilizam os antigos modelos.

Com o único objetivo de obter lucro, é a ferramenta perfeita num paradigma de capitalismo, em que investir em estratégias de reparação e revenda é negativo nas lógicas empresariais. Este é um modelo não sustentável ambientalmente e socialmente, o que leva a que ultimamente não o seja economicamente. Para além das falhas de design referidas e o crescimento económico linear que implica, existem outros componentes deste conceito que serão discutidos em diferentes exemplos. Estes são salários baixos, uma logística do produto que torna difícil a sua manutenção, um marketing que incentiva à substituição e uma desconexão geral por parte do consumidor de todo o processo de fabrico [10].

Revolução económica

A criação desta ideia deu-se após a disponibilização comercial das lâmpadas incandescentes, constituídas por um filamento de carbono. Na década de 1920, o seu mercado começou a crescer, e um conjunto de produtores, chamado o Cartel Phoebus, percebeu que conseguiria obter mais lucro se as lâmpadas fossem mais descartáveis. Determinaram então que o tempo de vida das mesmas se reduzisse significativamente para 1000 horas. De facto, é difícil acreditar atualmente na existência da Lâmpada Centenária, acesa há cerca de 115 anos, na Califórnia (mais de 1 milhão de horas) [2].

Poucos anos mais tarde dá-se a origem da obsolescência percecionada, quando a General Motors começa a usar novos estilos e cores nos carros para manter as vendas, seguido da publicação de um livro que aplicava o mesmo conceito à moda feminina. O conceito de obsolescência programada é primeiramente oficializado por Bernard London, que o apresenta como a solução para a Grande Depressão dos anos 30. Com a degradação destes objetos, a demanda por parte dos consumidores era constante. Assim se abriram as portas para a aplicação abrangente deste modelo à maior parte dos bens que se pode possuir.

Not so Big Tech: aplicações na tecnologia

Na tecnologia, é comum aplicarem-se softwares que deixam de ser compatíveis com o equipamento ou mesmo com versões antigas do próprio programa. Um dos exemplos mais chocantes de usar software para ativamente causar obsolescência no hardware é o de os tinteiros para máquinas impressoras. Estes cartuchos contêm um chip que inclui um contador que impede que sejam usados após um certo número de páginas ou tempo, mesmo que ainda contenha tinta ou até pudesse ser carregado. Isto não só se apresenta como um custo acrescido para o consumidor, como são caracterizados por baixa degradabilidade e grande quantidade de plástico, metal e resíduos tóxicos. Existem já empresas em Portugal que permitem descartá-los de forma mais responsável. A HappyGREEN compra tinteiros e toners e procede à sua reciclagem ou tratamento adequado, assim como de outros Equipamentos Elétricos ou Eletrónicos [4].

Várias instâncias também aconteceram com a gigante Apple, sendo uma das mais polémicas conhecida pelo caso batterygate. Estudos realizados por Harvard concluíram que updates ao iOS estavam a abrandar o processador de antigos modelos do iPhone. Clientes argumentaram que as alterações forçaram a comprar novas versões dos produtos, e, acima de tudo, mostraram que a marca tinha intenções prejudiciais não explícitas. A Apple admitiu a sua responsabilidade, explicando que tinha o objetivo de melhorar a vida útil da bateria e aceitando pagar 500 milhões de dólares a utilizadores dos smartphones em causa, assim como 113 milhões de dólares a diferentes estados nos EUA devido a múltiplos processos judiciais [7]. Não obstante, a empresa continua com uma quantidade de vendas e lucro históricas, mantendo o prestígio de ser a empresa tecnológica mais valiosa, que conseguiu alcançar ao estar na vanguarda da inovação. Em 2021, a Apple anunciou grandes compromissos para com a sustentabilidade, entre os quais atingir a neutralidade carbónica na cadeia de fornecimento assim como nos produtos em 2030, o uso de materiais reciclados e apoios a projetos comunitários de energias limpas e reflorestação. Por exemplo, no último iPhone 13 conseguiu-se uma redução de 11% na pegada carbónica e evitou-se a mineração de 2.6 milhões de toneladas métricas de rocha com o uso de ouro, tungsténio e estanho reciclados [8].

Estas práticas são exemplos a seguir mas não podemos deixar de ter um olhar crítico, podendo tratar-se de facto de greenwashing e até, ironicamente, levar à obsolescência percecionada de antigos modelos [9]. Uma estratégia lucrativa foi, aquando do lançamento do iPhone 12, a Apple retirou os phones com fios e o adaptador da embalagem, que agora apenas contém um cabo Lightning para USB C, quando podia ter mantido um universal. O consumidor tem agora de comprar um adaptador para este cabo ou, em alternativa, o novo carregador wireless, o MagSafe. Acabou assim por se nulificar a solução à problemática inicial de já haver adaptadores universais suficientes, ao mesmo tempo gastando-se ainda mais recursos materiais e energéticos num envio separado destes equipamentos [22]. Outra das apostas mais recentes da Apple é a robot Daisy, que extrai minerais raros de (modelos mais recentes de) iPhones para serem reciclados. Kyle Wiens é o fundador da iFixit, onde se vendem ferramentas ou partes, e onde também se disponibilizam manuais de reparação grátis com uma visão de diminuir impactos da produção de tecnologias. Kyle diz que uma opção muito mais viável do que a reciclagem é apostar na reparação, pois a reciclagem de modelos diferentes implica um investimento em unidades de reciclagem distintas, aumentando assim o custo da operação, e ultimamente levando também a que o cliente compre um produto novo.

A indústria tecnológica engloba uma panóplia de impactos ambientais, desde a energia usada na mineração e refinamento de metais raros e outras matérias primárias, na própria produção dos equipamentos, à que é consumida pelos dados (para saberes mais podes ver a nossa rubrica Econsciente XV: O impacto da Internet). A estes associados, estão muitas vezes impactes sociais, apresentando violações de leis de trabalho comuns e direitos humanos, tanto na sua fabricação como no tratamento de resíduos. Mas um dos problemas mais emergentes é de facto a quantidade astronómica e em expansão de resíduos eletrónicos ou e-waste. De acordo com o relatório da ONU, The Global E-waste Monitor 2020, estes já representam 50 milhões de toneladas métricas produzidas apenas em 2019, das quais menos de 20% foi reciclado [9]. Há também um problema de transparência descrito neste relatório: apenas 17% foi documentado e devidamente reciclado; isto é, o restante foi despejado entre outros tipos de lixo. Por outro lado, embora a exportação de lixo eletrónico seja ilegal na ONU, este é transportado muitas vezes com a denominação de “mercadoria reutilizável”, o que já é permitido, quando na verdade 25%-75% deste não o é.

Este lixo apresenta-se também como um perigo para a saúde pública, nomeadamente de países no Sul global como o Gana ou em países asiáticos como a Índia e a China, onde a maior parte acaba sem regulamentações para a sua reciclagem ou gestão [18]. Compostos destes materiais acabam por se infiltrar nos solos e nos lençóis freáticos destas regiões, assim como por libertar gases tóxicos para a atmosfera. A exposição a conteúdos tóxicos gera efeitos nocivos. Temos como alguns exemplos o chumbo e mercúrio com efeitos no sistema nervoso central e no sangue, cádmio no sistema digestivo, retardadores de chama bromados (BFR) e os ftalatos DEHP e DBP no sistema reprodutivo e endócrino [14]. Estes problemas juntam-se a queimaduras, problemas nos olhos, pulmões e nas costas, afetando residentes que trabalham manualmente na reciclagem de metais maioritariamente, onde até crianças se encontram a queimar a borracha de cabos para recuperar o cobre presente [19]. Outra economia lucrativa está a surgir com a reparação de alguns equipamentos e centros de treino técnico assim como clínicas de saúde para estes trabalhadores estão a ser desenvolvidos [21].

Posições no combate à obsolescência: Resposta política, empresarial e do consumidor

Nesta matéria é crucial surgirem medidas políticas que contribuam para a extensão do ciclo de vida dos objetos. Programas “Pay as you throw” partem do princípio poluidor-pagador, em que quanto mais reciclagem um cidadão fizer e menos lixo indiferenciado produzir, menor será a tarifa de resíduos, a qual atualmente está só associada à quantidade de água consumida. Depois da campanha “Lixo não é água”, que a Deco Proteste lançou por uma tarifa de resíduos mais justa, foi aprovado um decreto-lei que visa a implementação de sistemas deste tipo em todo o país nos próximos 5 anos [11]. Leis que partem do princípio da responsabilidade alargada do produtor já estão na agenda de muitos estados nos EUA, e pensa-se que com a vontade geral de fazer uma melhor gestão de resíduos, vão conseguir mover os custos de reciclagem dos cidadãos para as empresas produtoras de embalagens, especialmente as mais difíceis de reciclar (já existindo para outros produtos como tintas, baterias ou fármacos). Em Portugal, este já está em vigor desde 1997 e é atualmente aplicado em embalagens, pneus, equipamentos elétricos e eletrónicos, entre outros, incentivando mais à ecoeficiência e ecodesign [12]. Leis laborais mais justas iriam também corrigir a base desta cadeia de fornecimento mundial, obrigando a padrões mais éticos e saudáveis de consumo.

A reparação de equipamentos ainda é extremamente difícil, sendo que face a uma avaria normalmente o utilizador recorre a comprar uma substituição. Em 2020, a Comissão Europeia aprovou estratégias com a visão de aumentar o tempo de vida útil dos produtos e fazer uma melhor gestão de resíduos, promovendo a cultura de reutilização, reparação e acima de tudo transparência. Neste contexto, apelou-se ao “direito à reparação” dos consumidores, exequível quer mediante a extensão ou concessão de garantias para peças substituídas, quer através de um melhor acesso à informação sobre manutenção. Outra prática referida foi a introdução de um carregador comum, para reduzir a produção de resíduos eletrónicos e também a rotulação de acordo com a durabilidade destes dispositivos [13].

Com efeito, a França implementou em 2021 o Índice de Reparabilidade, o qual obrigada fabricantes de computadores, telemóveis, televisões, cortadores de relva e máquinas de lavar a divulgar a cotação de 0 a 10 com base num conjunto de critérios:

  • Documentação: compromisso do fabricante em disponibilizar gratuitamente documentação técnica, em número de anos, para os técnicos de reparação e consumidores;

  • Desmontagem, ferramentas e fechos: facilidade de desmonte do produto, o tipo de ferramentas necessárias e as características dos fechos;

  • Disponibilidade de peças sobresselentes: período de tempo durante o qual o fabricante se compromete a disponibilizar peças sobresselentes para o produto;

  • Preço das peças sobresselentes: relação entre o preço de venda das peças sobresselentes e o preço do produto;

  • Especificidades do produto: consiste em subcritérios específicos da categoria de produto, que pode incluir disponibilidade de suporte remoto, atualizações de software e reposições.

Produtos da Apple demonstraram sem surpresa cotações muito baixas, em diversos exemplos à volta de um C-. Já a Samsung obteve uma cotação superior, tendo até publicado um manual de reparação, algo sem precedentes [15].

Concomitantemente, surgem empresas orgulhosas nos seus produtos sustentáveis e viáveis a longo prazo, como é o caso da Fairphone. Este apresenta uma garantia de 5 anos e tem um design simples que permite ao proprietário fazer trocas de partes em casa. Devido à fonte dos materiais, tem o certificado Fairtrade para ouro, extraído em minas artesanais, que empregam milhões de pessoas, mas aqui de forma segura, justa e ética. Apoia programas para diminuir também o conflito associado, sendo uma das indústrias mais graves a mineração de cobalto, 70% feita na República Democrática do Congo [16]. É produzido então com plástico reciclado, tendo-se juntado ainda a diferentes iniciativas de extração sustentável e/ou reciclagem de materiais raros [17].

Por fim, para além de nos mantermos informados tem de haver consciência dos impactos das nossas ações. Assim, deixo aqui algumas formas de contribuir para a mudança necessária no consumo e hábitos no dia-a-dia:

  • Comprar produtos de qualidade, duradouros, reparáveis, sustentavelmente e eticamente produzidos;

  • Comprar objetos novos apenas quando for preciso e procurar em segunda mão. Incorporar a reparação e manutenção nos nossos hábitos, gastando tempo e dinheiro no que já possuímos;

  • Quando um objeto chegar ao fim do seu tempo de vida, ou o seu uso pela pessoa em causa acabar, dar a alguém que ainda precise.

Mais especificamente para aparelhos eletrónicos:

  • Exigir garantias mais longas assim como disponibilidade de partes sobresselentes;

  • Reciclar os aparelhos de forma correta, ou revender se ainda funcionar;

  • Exigir que produtores tentem eliminar substâncias perigosas;

  • Em smartphones: não saltar updates; apagar apps pouco usadas e outros ficheiros menos importantes para não o abrandar; manter ecrã e entradas limpas; evitar sobreaquecimento da bateria e que esta chegue ao fim.

Saving…

Na sua implementação, nem todos os objetivos eram maliciosos. É verdade que não ter produtos muito duradouros acaba por resultar em mais inovação, criar trabalhos e estimular a economia. Por outro lado, um dos fatores de competição é a durabilidade, portanto não está no total interesse das empresas produzir algo que não performa bem nesse aspeto.

Mas face a todas estas questões, há que pensar, qual o custo de ter sempre acesso à tecnologia mais recente? Aos produtos concebidos com os materiais mais novos? Serão estas promessas de inovação tão cruciais como fazem parecer? Trata-se de uma mudança de mentalidade necessária para apreciar a durabilidade dos objetos, a fiabilidade dos mesmos enquanto satisfizerem as nossas necessidades. Assim, através da nossa recusa, o próprio modelo de negócio irá ser direcionado para um objetivo de reciclagem mais inteligente, reutilização e reparação de equipamentos que de outra forma seriam resíduos.

Para aprenderes mais sobre este tema recomendo veres o respetivo vídeo no canal Our Changing Climate [1], assim como os restantes vídeos que explicam problemáticas de sustentabilidade de forma resumida, perceptível e impactante. Felizmente, este tema entrou recentemente também na esfera jornalística, num artigo do jornal Público escrito por Renata Monteiro, o qual podem ler aqui.

 

Referências

[1] Our Changing Climate, “Planned Obsolescence Sucks. Here’s Why It Still Exists.”

[2] BBC, Here’s the truth about the ‘planned obsolescence’ of tech.

[3] Science direct, Planned Obsolescence

[4] https://happygreen.pt/

[5] JSTOR Daily, The Birth of Planned Obsolescence

[6] Investopedia, Planned Obsolescence

[7] The Washington Post, Apple to pay 113 usd million to settle state investigation into iPhone batterygate

[8] https://www.apple.com/environment/

[9] GLOBUS, The E-Waste Problem: A Case Study of Apple

[10] Sierra, Built Not to Last: How to Overcome Planned Obsolescence.

[11] DECO Proteste.

[12] APA, Fluxos específicos de resíduos

[13] Parlamento Europeu, Parlamento Europeu quer dar «direito à reparação» aos consumidores da UE.

[14] E-Waste 2.0: Recycling for sustainability

[15] Green Matters, Planned Obsolescence Exposed at Apple and Microsoft, in Light of New French Regulations

[16] Why Cobalt Mining in the DRC Needs Urgent Attention

[17] https://www.fairphone.com/en/

[18] PLANNED OBSOLESCENCE: THE SERIOUS PROBLEM OF ELECTRONIC WASTE.

[19] Wired, The Hellish E-Waste Graveyards Where Computers Are Mined for Metal

[20] The Guardian, Agbogbloshie: the world’s largest e-waste dump – in pictures

[21] IYBSSD 2022, Upcycling e-waste trash into innovative treasure

[22] GLOBUS, The E-Waste Problem: A Case Study of Apple

[23] Público, O smartphone do futuro não precisa de mais ecrãs - mas, sim, de durar dez anos