O cimento tem sido um dos produtos industriais com maior importância no desenvolvimento das infraestruturas da sociedade moderna. Este é o principal componente do betão, material de construção que é utilizado na edificação de escolas, hospitais, casas, pontes e até barragens.
O que torna o betão tão omnipresente são as suas características atrativas como preço, versatilidade em ser produzido em qualquer lugar e qualidades estruturais adequadas para construções duradouras. Características estas que fazem deste material a escolha predileta tanto das economias desenvolvidas assim como das economias emergentes, estando por isso o seu uso em valores astronómicos e sem tendência de diminuir.
No entanto, a produção de cimento, que permite que depois se utilize na produção de betão, apresenta um contributo para as alterações climáticas difícil de ignorar e que precisa de ser enfrentado. A indústria do cimento, através da produção de mais de 4 mil milhões de toneladas de cimento anuais, emite, anualmente, cerca de 8% das emissões globais de CO2 [1]. Trata-se de uma indústria que precisa de reduzir, pelo menos, 16% das suas emissões anuais para estar em concordância com o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas [2].
Corresponder a estas expectativas de redução de emissões requer um conjunto de soluções que têm de ser implementadas em simultâneo. Algumas destas soluções passam por aumentar a eficiência de energia das fábricas de cimento, substituir o uso de combustíveis fósseis por alternativas sustentáveis e tentativa de captura do CO2 e respetivo armazenamento. Mas estamos a falar de soluções que são gerais às indústrias, e que, tendo em conta que mais de 50 % desta produção de CO2 é intrínseco à forma de como o cimento é produzido, não seriam suficientes para ter um impacto notável [1].
Para tal é necessária uma alteração da forma como é feita o cimento, é necessário repensar o processo da produção, e também apostar no desenvolvimento de novos cimentos, cujo processo de produção tenha menor impacto ambiental.
Com estes objetivos, foi fundado há alguns meses o Laboratório Colaborativo C5Lab – Sustainable Construction Materials Association (https://c5lab.pt/), de que fazem parte as duas empresas produtoras de cimento, a SECIL e a CIMPOR, o IST e o LNEC, e que lançou recentemente 10 projetos de desenvolvimento, para os quais contratou cerca de 20 mestres e 10 doutorados, quase todos com formação de base em engenharia.
Um dos projetos recebeu, ainda antes da fundação do C5Lab, um financiamento do Programa Portugal 2020, e tem o acrónimo CLEAN 4G. Trata-se de uma investigação que visa a reduzir o balanço das emissões de CO2 utilizando-o, com ajuda de hidrogénio, na produção de metano, que pode ser reintroduzido como combustível no ciclo de produção de cimento.
Para introduzir e explicar a investigação que está a ser feita nesta linha de investigação, introduzo-vos ao coordenador científico deste projeto, João Bordado, professor do departamento de Engenharia Química no IST e investigador do Centro de I&D CERENA(Centro de Recursos Naturais e Ambiente), onde este projeto está a ser desenvolvido. Neste grupo faz-se investigação relacionada com o uso sustentável de recursos naturais, incluindo energia, assim como o seu impacto no ambiente.
Entrevista
Gostaria de começar por lhe pedir para descrever, resumidamente, o seu percurso académico e profissional.
Terminei o meu curso de Engenharia Química no IST poucos dias antes do 25 de Abril (17 de Abril de 1974) e fui convidado pelo Professor Bernardo Herold para assistente no então epartamento de Química Orgânica onde ensinei e fiz investigação em Química Orgânica e em Mecanismos das Reações. Cerca de 3 anos depois surgiu a oportunidade de integrar uma equipa de projeto encarregada de implementar duas novas fábricas no parque industrial da Quimigal no Barreiro. A experiência de supervisionar a engenharia de detalhe, bem como a construção, e ser responsável pelo arranque da instalação, foi, do ponto de vista da engenharia, uma experiência muito enriquecedora.
Depois do arranque muito bem-sucedido da Fábrica de Resinas Poliéster, que logo no primeiro “batch” produziu resina dentro especificação, fui nomeado responsável de I&D, e durante alguns anos desenvolvi novos polímeros reativos, para Materiais Compósitos e Prepolímeros de Poliuretano para a indústria de rolhas aglomeradas de cortiça.
Simultaneamente com o acompanhamento do projeto da fábrica, projetei uma instalação piloto com 3 reatores (5, 10 e 20 litros de capacidade) que replicava inteiramente a instalação fabril, e foi nessa instalação piloto que fiz todo o trabalho experimental para a minha tese de doutoramento, que foi orientada pelos professores Ramoa Ribeiro e Farinha Portela.
O desenvolvimento de novos produtos, e em especial a possibilidade criada de se produzirem em Portugal alguns Polímeros Reativos que conseguiam substituir com vantagem outros que até então eram importados, terá “feito inveja” a empresas concorrentes da Quimigal, e em 1986 recebi um convite para chefiar a equipa de I&D do Grupo Hoechst em Portugal, e devo confessar que as condições que me foram propostas eram irrecusáveis.
O grupo Hoechst incluía uma fábrica de PET em Portalegre (Hoechst Fibras), uma fábrica de formaldeído e de resinas, a Bresfor, um conjunto de unidades fabris em Mem Martins, com especial relevância a Resiquimica detida em 66% pela Hoechst, e ainda fabrica de produtos auxiliares para as indústrias têxteis em Perafita, muito perto da Refinaria do Norte.
O grupo Hoechst teve sempre como tradição vender quase exclusivamente produtos por ele desenvolvidos, e a nível mundial “gastava” por dia um milhão de contos (5 milhões de Euros) em atividades de I&D, com laboratórios de I&D em 12 Países.
A Hoechst Portuguesa, se bem que pequena dentro do grupo, dava emprego em Portugal a cerca de 2500 colaboradores e tinha um volume anual de negócio da ordem dos 70 milhões de contos (350 milhões de Euros) sendo, durante muitos anos, na área da química o maior grupo em Portugal.
Dentro do Grupo Hoechst fui inicialmente chefe de grupo de I&D, depois Diretor de I&D da Hoechst Portuguesa e quando o Grupo Hoechst resolveu lançar em Portugal uma nova empresa, a Hoechst Ambiente, o Presidente do Grupo Wolfgang Kemper teve a amabilidade de me convidar para CEO (à data a designação era Presidente do Conselho de Administração), mas na prática, e como se faz nas empresas bem geridas, as funções eram de CEO e também de “Chief Engineering Officer”.
A Hoechst Ambiente, logo no primeiro ano faturou mais de 600 mil contos (3 milhões de Euros) em produtos para tratamento de água potável, floculantes, coagulantes, inibidores de corrosão, bem como produtos para tratamento de água de piscinas, (precursores de Cloro e Bromo, algicidas, anti incrustantes) e ainda uma linha muito completa de produtos para tratamento de águas industriais de processo.
Estas funções de CEO foram especialmente desafiantes durante os dois primeiros anos em que foi preciso compor o portefólio de produtos e equacionar a produção dos de maior volume de vendas, atividade que desenvolvi em acumulação com a direção de Investigação e Desenvolvimento.
Em 1998, o Grupo Hoechst resolveu centralizar as atividades de I&D em apenas 5 Centros de Investigação (em vez dos 12) e convidou-me para chefiar a Linha Polímeros Reativos em Frankfurt, e devo confessar que as condições propostas eram realmente superiores às que tinha em Portugal, mas com ao meus filhos ainda no ensino secundário, e tendo investido verba muito significativa na aquisição de duas casas acabei por não aceitar este novo desafio.
Durante estes 22 anos de atividade na Indústria, lecionei como professor convidado as disciplinas de Projeto de Indústrias Químicas, e módulos em mais de 20 outras disciplinas.
Em resumo: 46 anos de ensino de Engenharia, 46 anos de atividades de Investigação e Desenvolvimento, dos quais cerca de 22 na indústria.
Tendo 22 anos de experiência na indústria e autor de diversos artigos, quando decide envergar num projeto, quais são os seus critérios de seleção para investir o seu tempo neles?
Os meus principais critérios são, de forma muito resumida, os seguintes:
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Reconhecer a importância industrial do Plano de Trabalho
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Confirmar a viabilidade de mais tarde poder ser implementado industrialmente (exequibilidade do Scale-up).
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Ponderar a probabilidade de sucesso em face dos meios disponíveis ou a reunir.
O que o levou ao desenvolvimento deste projeto?
A reação do CO2 com excesso de Hidrogénio para produzir metano (mecanismo com vários passos) é conhecida há muitos anos, mas a conversão por passo com os catalisadores que tem vindo a ser utilizados é relativamente baixa.
Trata-se, fundamentalmente, de desenvolver catalisadores mais eficazes e duráveis, já que o Scale-up é neste caso fácil de equacionar e projetar.
A equipa que está a desenvolver os trabalhos envolve investigadores da SECIL, do CERENA e do CQE, alguns dos quais com uma larga experiência no desenvolvimento de novos catalisadores, pelo que é muito provável que no fim do projeto tenhamos novos catalisadores mais eficazes do que os que atualmente são utilizados.
Poderia explicar as diferentes formas como a produção de cimento leva ao agravamento das alterações climáticas?
O CO2 emitido durante a produção de cimento, resulta em parte da descarbonatação do calcário utilizado como matéria prima, e também da oxidação que ocorre nos processos de combustão que permitem manter o forno a temperaturas superiores a 1100ºC.
A conversão de CO2 em metano, e a posterior utilização do metano como combustível, permite eliminar esta segunda parcela.
Como é que a solução do vosso projeto propõe melhorar este problema e qual seria o progresso em termos de emissões de CO2?
Em termos de balanço, e uma vez que o CO2 em vez de emitido será parcialmente convertido em metano a redução de emissões será de facto muito significativa.
De que forma o vosso projeto se distingue das outras tentativas de reduzir o CO2 na produção de cimento? Os dois caminhos diferentes para obter metano que mencionam no projeto são diferentes do que está a ser investigado noutros projetos?
Sim, efetivamente há diversos aspetos inovadores na metodologia que está a ser seguida, prevendo-se que os novos catalisadores devam ser objeto de patente.
A indústria do cimento é bastante lenta em termos de mudança, devido à falta de competição. A vossa solução iria propor uma alteração fácil de implementar que seria facilmente aceite pela indústria?
Em processos industriais, com unidades de grandes dimensões, e otimizados durante dezenas de anos nunca é fácil fazer uma alteração. No entanto, neste caso, temos a vantagem de que a captura do CO2 e a conversão em metano pode ser feita em fim de linha sem modificar a parte de reação do processo produtivo.
Em que fase do projeto se encontram e têm alguma parceria a decorrer de forma a passarem a uma fase de testes no terreno?
Sim, as empresas produtoras de cimento acompanham com muito interesse o trabalho de desenvolvimento em curso, e consideram a possibilidade de se montar uma instalação piloto que permita passar de TRL4 para TRL6 (Technology Readiness Level), bem como obter dados que permitam fazer de forma segura o projeto de uma unidade industrial.
Quais foram os maiores desafios ao longo do projeto?
Assegurar que o catalisador é suficientemente robusto e tolerante à presença de contaminantes do CO2 sem sofrer desativação significativa.
Enquanto trabalhavam no projeto descobriram alguma coisa que não conseguiram explorar e gostariam de o fazer num projeto futuro?
Sim, de facto a redução do custo industrial do processo depende por um lado do custo do hidrogénio, mas também do custo energético dos processos de captura do CO2.
Notas
[1] Making Concrete Change: Innovation in Low-carbon Cement and Concrete, link.
[2] Based on the Beyond 2°C Scenario (B2DS) in International Energy Agency (2017), Energy Technology Perspectives 2017: Catalysing Energy Technology Transformations, Paris: Organisation for Economic Cooperation and Development/International Energy Agency, link (accessed 6 Jun. 2017).