O projeto Reducing the Energy Dependency of Atlantic Area Water Networks (REDAWN) surgiu para dar apoio à eficiência energética no sector da água, na área Atlântica, que conta com a colaboração do Instituto Superior Técnico, em cooperação com várias instituições internacionais. O projeto pretende incorporar a tecnologia micro-hídrica de baixo custo em locais que apresentem excesso de pressão na indústria da água, permitindo garantir uma maior eficiência energética. Pretende-se desenvolver vários projetos baseados em soluções micro-hídricas de recuperação de energia (Micro-Hydropower Plant – MHP), cujo objetivo é gerar energia hidroelétrica a partir do excesso de pressão em redes de condutas, que pode ser aplicado nas seguintes áreas de intervenção:
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Sistemas de rega,
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Sistemas de abastecimento de água potável,
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Processos industriais,
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Sistemas de drenagem e tratamento de águas.
Muitos desses sistemas apresentam um elevado potencial de recuperação de energia, antes desperdiçado, através da substituição de geradores alimentados a combustíveis fósseis em zonas rurais e isoladas, reduzindo o impacto do sector no meio ambiente, bem como os custos operacionais associados à captação, tratamento e consumo de água e energia. Sabe-se que a indústria da água contribui para o consumo de energia, com emissões de CO2 associadas, afetando negativamente o meio ambiente. A criação de uma ligação institucional, social, ambiental e tecnológica entre as 15 entidades intervenientes (i.e., empresariais, académicas e gestoras) de 5 países da zona Atlântica, tendo Portugal a incumbência de desenvolver dois projetos, um ao nível de unidade familiar de consumo de energia a partir do aproveitamento de água de uma mina de tungsténio (IST e IG energy) e outro de um processo industrial de produção de papel (IST, Hidropower e RENOVA). Outros projetos sobre a orientação do IST (i.e., da Prof. Helena M. Ramos) em mais dois países da Europa Atlântica, incluem em Espanha uma micro-hídrica num sistema de rega (com a Universidade de Córdoba, FAEN e FERRAGUA) e em França numa estação de tratamento de águas (com a SMPGA). Em complementaridade a estes estudos, foi desenvolvido um projeto numa zona isolada em Angola, para a empresa ZERCA, com o objetivo da implementação de uma MHP numa região agrícola, por forma a torná-la sustentável em termos de disponibilidade energética renovável. Para nos ajudar a conhecer melhor este projeto temos connosco a Dra. Helena M. Ramos, professora no Departamento de Engenharia Civil, IST.
Entrevista
A professora (Helena M. Ramos) foi aluna do IST e agora docente no mesmo, e está na frente deste projeto em Portugal. Como foi o seu percurso académico durante o seu tempo de aluna?
Relembro uma situação engraçada, aquando da inscrição no curso. Em casa, todos aconselharam a que eu fosse para eletrotecnia. Contudo, em frente da secretaria para me inscrever, troquei impressões com alguns colegas na mesma situação e reparei que me identifiquei muito mais com os alunos de Civil. Por ironia do destino, segui a especialidade de hidráulica, quando estava inclinada em ir para estruturas, porque o docente responsável sugeriu quem tivesse uma média boa que se inscrevesse para monitor. Então face a essa possibilidade e tendo sido escolhida, achei por bem seguir a especialidade de hidráulica. Não tinha engenheiros na família, a não ser aeronautas, logo desde cedo sempre fui muito flexível e com capacidade de me adaptar a qualquer engenharia. Por ironia do destino, acabei por incluir na minha especialidade os aproveitamentos hidroelétricos, como obras de engenharia hidráulica que produzem energia elétrica e assim complementei as dúvidas que ainda pudessem restar da escolha tomada. Sempre gostei de água e energia, do nexus que agora tanto se fala. Há uns anos falava-se mais de cada componente em separado, mas recentemente, cada vez mais, as soluções são integradas com várias valências a interagirem. Gosto de estruturas e de hidráulica e por isso já desenvolvi estudos de interação fluido estrutura. Gosto de energia e água e também desenvolvo estudos de soluções hídricas e mais recentemente híbridas com armazenamento por bombagem, integrando outras fontes de energia renovável.
De entre vários projetos que já integrou, como chegou ao projeto REDAWN? O que lhe despertou interesse no mesmo?
Já integrei vários, mas os últimos estavam sempre ligados à componente hidroenergética. Como a resposta que demos em nome do IST foi muito relevante, passaram a conhecer-nos e a sermos alguma referência nesse sector, o que deu origem a vários convites de integração/participação.
Como surgiu a ideia para desenvolver este projeto e quem foram os seus pioneiros?
A participação em projetos internacionais anteriores, a investigação desenvolvida, a associação a outros trabalhos de investigação, as publicações científicas desenvolvidas, que tive o cuidado de integrar colegas externos da mesma área de interesse, permitiu complementar ideias com a inovação necessária para se criarem consórcios de interesse, que nos passam a convidar a integrar propostas, onde se ganham algumas e se perdem muitas, como acontece na engenharia de projeto, onde existem muitos concorrentes, muitos estudos e ganha aquele que os avaliadores consideram ser o melhor em inovação, interesse, com vantagens significativas em termos de contributo técnico, social, ambiental e mais valia económica para o sistema, a região ou o país.
O projeto REDAWN engloba 15 entidades, entre empresas, instituições, universidades e institutos de investigação, de 5 nacionalidades diferentes. Como tal o mesmo está dividido em vários sectores, chamados de Work Packages (WPs), onde cada entidade desempenha um papel. Como foi feita esta divisão e quais o WPs mais cruciais?
O projeto REDAWN foi dividido em 8 WPs. Cobrindo componentes de coordenação, comunicação, capitalização, avaliação do potencial energético, impactos económicos e ambientais, ferramentas de apoio ao projeto e decisão, instalações piloto, política, apoios institucionais e impactos societais. Esta estrutura foi muito bem pensada por forma a cobrir todas as componentes associadas a um projeto de investigação com o objetivo de ser implementado, face ao potencial disponível que está desperdiçado. Todas as WPs têm relevância significativa e complementam-se. Contudo sem a WP7, das instalações piloto, o projeto seria um falhanço. O objetivo é construir instalações piloto para melhor convencer as entidades gestoras, as empresas projetistas, as organizações governamentais, da vantagem dessas soluções na melhoria da sua eficiência energética, no controlo de perdas por excesso de pressão nos sistemas de água. Tenho o privilégio de em nome do IST, ser a coordenadora desta WP, embora participe afincadamente também noutras WPs de importância para o projeto, como um todo.
Como funciona uma MHP e como pode ser usada para recuperar energia?
Uma MHP é uma instalação hidroelétrica constituída por uma turbina hidráulica, como dispositivo conversor de energia, transformando a energia do escoamento em energia elétrica. Ao acionar uma roda que está ligada a um veio, usa a energia hidráulica disponível transformando-a em mecânica de rotação, e que se transmite até ao gerador, para, por fim, se transformar em energia elétrica. Esse aproveitamento da energia hidráulica (na forma potencial ou em cinética) dependendo do tipo de turbina, coloca em rotação uma roda. Basta pensar nas rodas dos moinhos de água que a corrente acionava para conseguir moer os cereais.
A sua equipa do IST teve de instalar este sistema em 3 locais diferentes: França, Espanha e Portugal. Porquê a escolha destes locais e a que processos se pretende aplicar a MHP em cada um destes países?
Eu sou a coordenadora da WP sobre as instalações piloto, não significando que o IST tem que proceder à instalação, mas sim à coordenação, com o apoio das diferentes instituições/entidades parceiras no projeto, dos diferentes países intervenientes. Os locais foram selecionados com vista a uma maior abrangência na divulgação do sucesso destas soluções de produção de energia nos vários sistemas do sector da água. Dependente do tipo de atuação e especialização dos parceiros no projeto, assim foram orientadas por forma a cobrir a generalidades de possíveis soluções, como exemplos de sucesso de aplicação. É o que no final do projeto se pretende mostrar e convencer tanto a população, como as entidades gestoras, os donos de obra, entre outros, dos benefícios associados a estas soluções e de como ultrapassar as barreiras ainda existentes, quando se quer integrar água e energia, quando, até então, sempre foram analisados em separado.
Em França estão a ser testadas duas aplicações deste sistema para funcionar como uma bomba a funcionar em modo turbina e uma pico turbina. Como funcionam ambas e que resultados esperam obter/obtiveram?
Nestes sistemas pretende-se com a energia produzida no sistema instalado numa estação de tratamento de água, que consome grandes quantidades de energia no processo de captação, tratamento e distribuição de água às populações, que alguns custos energéticos sejam cobertos pela produção conseguida. Na pico turbina (ou muito pequena) instalada como um molinete numa conduta de abastecimento de água, junto de uma paragem de autocarro, permite disponibilizar energia para pequenos carregamentos de telemóvel, como se vêem nas salas de espera dos aeroportos ou para carregar pequenos veículos elétricos, do tipo trotinetes.
Em Espanha este sistema é aplicado num sistema de irrigação de uma produção agrícola. Em que segmento deste sistema implementaram a MHP e quais os seus impactos no sector energético da fazenda?
Nesta fazenda agrícola, numa zona isolada, sem energia local, era usado um gerador a diesel para o processo de adubamento das culturas. Detetou-se que no sistema de rega antes dos hidrantes, ou das bocas de rega, havia excesso de pressão do escoamento que era controlado através de uma válvula redutora de pressão (VRP). Em vez de dissipar o excesso de energia de pressão através dessa válvula, foi instalada uma bomba a funcionar como turbina, para produzir energia elétrica sempre que se regava. Isto permitiu desativar o gerador a diesel, com enormes vantagens ambientais e económicas (i.e., poluição, custo da matéria prima que é o diesel) por uma solução social, técnica e ambientalmente sustentável, que não polui e que produz energia quando é necessário regar. Esta turbina está ligada a um banco de baterias e a um painel fotovoltaico, como solução híbrida na gestão otimizada da energia disponível no local.
Já em Portugal, foi feita uma parceria com a empresa RENOVA para testar este sistema piloto num ambiente industrial. De que forma o estão a implementar? Em termos energéticos e financeiros que vantagens/desvantagens traz para a empresa?
É verdade que o IST, a Hidropower e a RENOVA acordaram, através do projeto REDAWN, desenvolver uma solução energética de aproveitamento do escoamento efluente proveniente do tratamento da água no processo de fabrico de papel (na fábrica da RENOVA), que antes da água tratada voltar a ser lançada ao rio pode acionar uma bomba a funcionar como turbina (porque para caudais pequenos as turbinas convencionais não são viáveis devido ao elevado custo associado e dimensões disponíveis) e assim, a energia ali produzida ser redirecionada para a fábrica, para ser utilizada. É um processo que exige muita água e energia, sendo uma solução que combina da melhor forma estas duas componentes, como solução vantajosa a vários níveis. Só para ter uma ideia dos custos associados e neste caso o circuito hidráulico será instalado na encosta até à cota do rio com um comprimento da ordem dos 200 m, com uma queda útil cerca de 30 m, um caudal de 35 l/s, que consegue produzir cerca de 7 kW com um caudal quase constante, apresentando um retorno do investimento de até 4 anos.
Tendo estes 3 locais para as instalações piloto do projeto, para que outros locais esperam poder expandir este projeto e em quais é que a MHP terá um maior impacto?
Estes foram os locais selecionados, mas o objetivo do projeto é divulgar essa tecnologia, o tipo de solução, os projetos ou estes estudos para poderem ser aplicados noutros locais. Nas outras WPs foi feito o levantamento do potencial energético que está por explorar, mostrando que num futuro próximo teremos, seguramente, mais soluções implementadas e barreiras ultrapassadas, que até agora impediam de se avançar na implementação destas soluções. Curiosamente já em 1999, numa investigação que desenvolvi sobre bombas a funcionar como turbinas, por serem dispositivos económicos e existentes no mercado, propus este tipo de solução, e senti muita desconfiança da sua aplicação no sector da água. Contudo com a minha insistência, com vários artigos científicos publicados com parceiros europeus que convido a integrarem, só assim, ao fim de 21 anos é que prevejo que este projeto deve conseguir disseminar os resultados, ultrapassar as barreiras existentes por forma a dinamizar e mostrar o significativo impacto positivo da aplicação ao conjugar água e energia numa solução de energia renovável.
Além deste projeto, existe o projeto desenvolvido para a ZERCA (Angola), no qual o IST está integrado. Em que consiste o mesmo e qual o papel da sua equipa nele?
Fui contactada, como especialista nesta matéria e propus à minha equipa de investigação desenvolver o projeto de conceção e dimensionamento para uma fazenda agrícola em Angola, da empresa ZERCA, constituída por portugueses e que precisam de água e energia. Consiste numa obra de captação de água num canal de rega existente, com derivação para uma condução em pressão, até à central hidroelétrica, seguindo-se um pequeno canal de restituição, ao rio que passa na fazenda. As características do projeto são uma queda útil de Hu = 9,5 m, um caudal de Q = 100 l/s, uma potência a instalar de P =4,75 kW, e um grupo bomba a funcionar como turbina com a velocidade de rotação de n = 1.520 rpm.
Tendo em conta os resultados já obtidos nalguns dos locais mencionados, qual o impacto ambiental maioritário que se verificaria se pudéssemos implementar este sistema em todos os processos industriais, agrícolas, tratamentos de águas, entre outros a nível nacional?
Certamente atendendo à avaliação do potencial energético do que foi possível levantar até à data, porque nem sempre é fácil por razões de disponibilidade ou acesso à informação, existência de base de dados com deficiência de valores ou demasiadas medições para serem tratados em tempo útil, mas seguramente existe um potencial superior a 80 MW de forma descentralizada, com as vantagens associadas a uma energia verde em zonas remotas ou até mais isoladas.
Quantos anos serão necessários e que medidas políticas terão que ser mudadas (caso existam) para que possamos fazer uma implementação a nível nacional deste sistema MHP?
Penso que este projeto vem alavancar e impulsionar a sua futura implementação, prevendo-se que nos próximos anos surjam várias soluções aplicadas. É notório o aumento significativo de artigos científicos nestes últimos 5 anos sobre esta matéria de micro-hídricas aplicadas ao sector da água (abastecimento público, drenagem, rega e processos industriais) e que eu sinto o privilégio de ter sido a mentora destas micro-hídricas nos sistemas de água, com os meus primeiros artigos publicados em 1999 e 2000, e com dois livros técnicos publicados um em 2000 e o outro em 2018. Em 2007 organizei, no IST, um seminário ibero-americano com vários participantes dos países da América latina (Brasil, México, Argentina, Colômbia, entre outros), Portugal e Espanha que versava sobre o nexus de água e energia para fazer face às alterações climáticas e estas soluções já eram vistas como interessantes.
Que obstáculos existem ou prevê existirem à implementação do mesmo numa escala nacional? Como poderão ser ultrapassados?
Há inúmeras barreiras, que incluem a vontade política das entidades gestoras, apoios financeiros de renovação e credibilidade das soluções a implementar. Há múltiplos fatores sócio-técnicos que têm influenciado a adoção de MHPs, assim como a componente económica de custo-benefício é relevante conjuntamente com o valor social de poder pagar tarifas mais baixas e usufruir de um bem escasso como é a água e a energia, na consciência coletiva de uma nova fonte de energia renovável e na capacidade de conhecimento para a adoção destas soluções. A inovação em novos serviços, nomeadamente no controlo de perdas de água e energia pelas entidades gestoras, espera-se que promova a confiança e a disposição de implementar novas soluções, incluindo a social e a ambiental através de esquemas liderados pela comunidade com os serviços direcionados para melhor servir o consumidor.